Dorgival Viana Jr

1. Observações iniciais

Esse breve texto não terá por objetivo analisar politicamente o instituto, se foi uma boa escolha legislativa sua inclusão no chamado “pacote anticrime”, se deveria ou não ter sido vetado, nos limitaremos a buscar delimitar, a partir da nossa concepção, o que passou a ser essa figura nova no direito processual penal brasileiro, inclusive com sugestões pontuais sobre a aplicabilidade desta inovação.

Atualmente – como explico ao final – o instituto está suspenso por tempo indeterminado, mas sempre é interessante analisar os dispositivos e saber para quando for implementado.

2. Juiz das Garantias – Conceito

O Juiz das Garantias é, como já adiantado, uma figura nova, sem efetivo antecedente no direito processual penal brasileiro.

Esta inovação obriga o Poder Judiciário a destacar um Juiz especificamente para a fase pré-processual, ou seja, o Juiz das Garantias deverá representar o Estado-Juiz em todas as tarefas reservadas ao Judiciário, a exemplo de ordens de prisão, análise de pedidos de busca e apreensão, legalidade de flagrante e outros que serão melhor explicados no decorrer deste texto.

É de se pontuar que tais matérias já eram objeto de apreciação pelo Poder Judiciário e neste ponto não há nenhuma novidade.

O que se apresenta como efetiva inovação é a exclusividade deste juiz que não poderá ser o mesmo que funciona durante a instrução e julgamento.

O trabalho do Juiz das Garantias é encerrado após o recebimento da denúncia ou queixa, ou seja, a partir do momento em que a petição inicial é recebida e instaurada efetiva ação penal, deve o Poder Judiciário designar outro magistrado para funcionar no feito.

Destaco, por oportuno, que a ideia da separação das funções do Juiz que acompanha as investigações daquele que efetivamente instrui e julga o feito, não é nada nova.

Desde há muito existe a ideia de que o Juiz que acompanha o inquérito adere – uns mais outros menos – ao posicionamento policial da culpa, vez que assistiu a Polícia e o Ministério Público desde muito próximo do início das investigações.

Para defensores do Juiz das Garantias, o juiz se contaminava quando, por exemplo, analisava profundamente o fato apontado como criminoso e decretava uma prisão preventiva na fase pré-processual.

Sempre se exigiu uma análise de probabilidade muito robusta para tal medida excepcional, de modo que ao decidir pela prisão preventiva, o Juiz acaba por já formar (ainda que parcialmente e sujeita a alterações) uma ideia de culpa.

Desse modo, a separação das funções do Juiz que acompanha a investigação daquele que instrui e julga a ação penal teria por objetivo, manter o segundo livre das concepções pré-processuais, em nítido favorecimento à sua própria imparcialidade.

3. Juiz das Garantias – Como funcionará?

No momento da feitura deste texto (05/01/2020), ainda não é possível apontar com certeza como será o funcionamento desta nova figura na prática forense.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu consulta pública com a finalidade de colher opiniões para a regulamentação do instituto.

Acredito que a primeira e principal questão é a operacionalização do juízo das garantias em comarcas de juiz único (normalmente, cível e criminal).

Diz a nova Lei que os tribunais criação um sistema de “rodízio de magistrados” para funcionamento como juiz das garantias.

Sobre este tema, é sempre importante lembrar que a organização judiciária local é tema legislativamente afeto aos Estados, com iniciativa reservada ao TJ.

Assim, no âmbito da Justiça Estadual, caberá ao respectivo TJ organizar a competência dos Juízes das Garantias que, é certo, poderão ter atribuição para funcionar de modo regionalizado e de acordo com as peculiaridades locais.

Embora ainda não esteja certo como isso poderá ocorrer, a ideia legislativa é não demandar novos custos à sociedade com a simples criação de XX cargos de Juiz, mas que o Poder Judiciário, analise suas peculiaridades, e cumpra a legislação de modo eficiente.

É possível que para que esta determinação seja cumprida com eficiência haja fusão de comarcas pequenas, perda de competência para instruir e julgar crimes em uma de duas comarcas pequenas próximas (exemplo: um juiz funciona como Juiz das Garantias das duas comarcas, enquanto que o outro juiz funciona como Juiz da Instrução e Julgamento também das duas comarcas), tudo deve ser analisado localmente e a partir das peculiaridades regionais.

Desse modo, antes de optar – por exemplo – pela retirada de um juiz do poder de instruir e julgar e ampliar a base territorial de sua atuação, o Tribunal de Justiça local deve sopesar, dentre tantos outros elementos locais, a distância entre a sede das comarcas, a possibilidade de sujeitos processuais (como testemunhas, por exemplo) se deslocarem sem prejuízo à efetividade da justiça, possibilidade de adoção de inquéritos eletrônicos em cooperação técnica com as polícias (o que permitiria concentrar ainda mais) e até os custos operacionais em deslocamentos de pessoal (com auxílio-substituição, por exemplo).

Embora eu entenda que uma inovação deste porte deveria ser acompanhada de um prazo de vacância maior (são apenas 30 dias), acredito que o Poder Judiciário conseguirá dar efetividade a esta norma jurídica, notadamente ante o início dos estudos pelo CNJ.

4. Juiz das Garantias – Outros pontos importantes

4.1. Fim do apensamento do inquérito policial à ação penal.

Quem já pegou qualquer ação criminal em mãos, já deve ter percebido que é extremamente comum que o Ministério Público apresente sua petição inicial (denúncia) e colacione como anexo todo o inquérito policial, no original.

Esta providência muito comum já não é mais permitida, vejamos o texto do §3º do novo Art. 3º-C do Código de Processo Penal:

Art. 3º-C. § 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

O Ministério Público deve, assim, elencar os documentos que se enquadrem na ressalva do dispositivo supratranscrito, ou seja, só poderá juntar na ação penal “os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas”.

Cabe à defesa analisar se pedirá ou não a remoção de documentos que não se enquadrem nos conceitos acima, cuja decisão, por sua vez, caberá ao Juiz da Instrução e Julgamento.

Parece-nos que será demandado do Ministério Público uma acuidade processual muito maior que o formato admitido pela jurisprudência atual, ou seja, o membro do MP deve ser ainda mais técnico na análise da documentação dos inquéritos policiais recebidos e na formulação e instrução de sua denúncia.

Não deverá, o membro do MP, simplesmente juntar a íntegra do inquérito como se dissesse: “as provas estão aí, procurem”, mas, ao contrário, deve justificar tecnicamente cada inserção documental, o que será objeto de necessário contraditório.

4.2. Proibição de iniciativa judicial na fase investigativa

Embora nunca tenha sido unanimidade na doutrina (sempre houve críticas), o Juiz podia – de forma eventual e justificada – ter algum nível de iniciativa na fase de investigação, o que era admitido pela jurisprudência com base no poder geral de cautela conferido ao Poder Judiciário.

Atualmente, há vedação expressa às iniciativas “do juiz na fase de investigação”, bem como a “substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (Art. 3º-A do CPP).

Desse modo, o Juiz das Garantias não pode sugerir a inquirição de testemunhas, não pode determinar a abertura de inquérito sem pedido de ninguém (interpretação conforme e sistemática do art. 5º, II do CPP), não pode decretar prisão de ofício (embora entenda que pode deixar de decretar prisão solicitada, substituindo por outra medida cautelar menos gravosa), ou seja, deve supervisionar sem intervir.

O Art. 3º-B delineia os poderes do juiz das garantias e inclui algumas medidas de iniciativa própria, mas que não são propriamente investigativas, como, por exemplo, a determinação de apresentação de pessoa presa.

Todas as investigações instauradas no âmbito de atuação do Juiz das Garantias devem ser informadas a ele que zelará pelo cumprimento da legislação aplicável ao caso, incluindo os direitos e limites de atuação das partes e da pessoa eventualmente presa.

4.3. Resguardo da imagem da pessoa presa

O Art. 3º-F traz a necessidade de que o Juiz das Garantias também é responsável pela eventual exploração da imagem da pessoa presa, vejamos o que diz o dispositivo:

‘Art. 3º-F. O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.

Parágrafo único. Por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em 180 (cento e oitenta) dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação normativa aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão.’”

Desse modo, mostra-se importante que o Juiz das Garantias até mesmo impeça acordos – como é bastante comum acontecer – de filmagens dentro das delegacias e até mesmo de estabelecimentos prisionais que não contam com a aquiescência da pessoa encarcerada.

Isso inclui, em rol meramente exemplificativo, a proibição de:

  1. Colocação de presos em área específica para serem fotografados (em geral, a frente de um banner da Polícia);
  2. Permissão de ingresso de órgãos da imprensa em entrevistas em que há nítido constrangimento da pessoa presa;
  3. Distribuição, pelos órgãos de segurança, de fotografias e vídeos sem que haja finalidade pública;
  4. Etc;

Em nosso entender, as ressalvas não se aplicam a eventual captura de imagens pela imprensa no trajeto (embora haja a necessidade de expor o menos possível a pessoa presa), a divulgação de imagens dos crimes que forem de interesse público, a distribuição de fotos de pessoa foragida com vistas à localização do possível criminoso, enfim não inclui os casos em que houver interesse público ou da própria investigação.

Por certo, deve-se ponderar antes de buscar eventual responsabilização dos agentes públicos em casos concretos, vez que há necessidade de os órgãos que trabalham com o processo penal elaborarem um regulamento que permita de forma clara e antecipada saber como deve ser a relação destes órgãos com a imprensa, o que gerará segurança jurídica e previsibilidade para todos.

Os regulamentos devem ser elaborados pelas instituições policiais, pelo Ministério Público, pelo próprio Poder Judiciário e pelos órgãos do sistema prisional, cada um sobre sua esfera de atuação.

Desse modo, o Poder Judiciário deve proteger a imagem – dentro dos limites da lei – de pessoa presa submetida a audiência de custódia, por exemplo.

Em resumo, agora está expressamente proibidas as exposições midiáticas dentro de delegacias, montagem de palcos para apresentação de presos, entrevista forçada pela autoridade e outras condutas que se enquadrem nas proibições, mas ainda é permitida a divulgação de informações, captura de imagens pelo órgão de imprensa sem contribuição ativa das autoridades e outros meios de exposição do preso permitidas pelo direito à informação, mas que não firam a dignidade da pessoa humana.

4.4. Juiz das Garantias e infrações de menor potencial ofensivo

Segundo o novo art. 3º-C do Código de Processo Penal, o Juiz das Garantias não será uma figura necessária quando se tratar de crime de menor potencial ofensivo, ou seja, aqueles cuja pena máxima prevista em abstrato seja igual ou menor que dois anos, cumulada ou não com multa (art. 61 da Lei 9.099/95).

É de se apontar que haverá a necessidade de atuação do Juiz das Garantias quando o crime de menor potencial ofensivo estiver sendo investigado em conjunto com outros delitos mais graves, ou seja, quando a conexão determinar a reunião de processos é o Juiz das Garantias (e não o dos Juizados quem deve atuar).

4.5. As medidas cautelares aplicadas pelo Juiz das Garantias precluem?

Como se disse, o trabalho do Juiz das Garantias é encerrado quando ele recebe a denúncia ou queixa, passando a – agora – ação penal para o Juiz da Instrução e Julgamento que se encarregará do processo até a sentença (e eventuais despachos em recursos).

Por tal razão, a nova lei deixou claro que as decisões proferidas pelo primeiro não vinculam o segundo. Vejamos o texto dos parágrafos do art. 3º-C:

Art. 3º-C.

§ 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.

§ 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.

§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

§ 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.’

Como se vê nos dois primeiros dispositivos transcritos é que o Juiz da Instrução e Julgamento não fica vinculado pelas decisões do Juiz das Garantias, mas a lei foi um tanto além.

A parte final do art. 3º-C, §2º determina o reexame necessário das medidas cautelares já em curso (prisão, acautelamento de passaporte, restrição a viagens, obrigação de comparecimento no fórum etc) no prazo máximo de dez dias.´

Agora cabe interpretação sobre a natureza dessa obrigação, seria o prazo máximo de dez dias um prazo preclusivo que gera a imediata e automática perda de eficácia das medidas cautelares ou é um prazo obrigatório que uma vez não cumprido gera constrangimento ilegal declarável pelo Tribunal respectivo?

A meu ver, a infração a este prazo gera a imediata possibilidade de declaração, pelo Tribunal, do constrangimento ilegal a que submetida a pessoa acusada, devendo o órgão de segundo grau analisar o caso concreto e decidir conforme.

Entender que gera a perda da eficácia imediata, indicaria a possibilidade de a defesa, por exemplo, pedir liberação de pessoa submetida a prisão cautelar simplesmente com certidão de decurso de prazo. Não nos parece a medida mais segura em um sistema repressivo, ainda que fundado na dignidade da pessoa humana.

Assim, o próprio Juiz da Instrução e Julgamento que perdeu o prazo não perde a possibilidade de reexaminar depois do prazo e a ultrapassagem do prazo não gera direito imediato e inafastável à revogação/anulação das medidas cautelares em vigor.

Devendo o Tribunal ponderar o contexto fático quando da análise dessa espécie de constrangimento ilegal.

5. Conclusões

O Juiz das Garantias, apesar de ser figura controversa, está previsto em nossa legislação processual e, como lei, deve ser aplicado a todas as investigações abertas e as que forem abertas a partir de então.

Lembremos que a regra no direito processual é que novas regras sejam aplicáveis de imediato, respeitado o que foi legalmente praticado sob a égide da norma anterior.

Não verificamos – nesta análise – nenhuma inconstitucionalidade, vez que é claramente uma norma processual e que cabe ao Congresso Nacional legislar sobre tal tema.

A única irrazoabilidade – sempre em nossa opinião – é o reduzidíssimo prazo de vacância legislativa, vez que 30 dias corridos incluindo o recesso judiciário é quase impraticável para alterações tão profundas como a criação dos Juízes das Garantias.

Outro ponto, é que não é aplicável para as infrações de menor potencial ofensivo (salvo conexão) e às investigações conduzidas por tribunais.

Atualização

O Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática, suspendeu a eficácia dos dispositivos referentes ao Juiz das Garantias.

Inicialmente, o Ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo, suspendeu este instituto por 180 dias, mas ao receber o processo como relator, o Ministro Luiz Fux alterou a decisão anterior e tirou o prazo.

É dizer: A suspensão do Juiz das Garantias continua e será mantida por tempo indeterminado.

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